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Os riscos dos modelos prontos de redação

A prova de redação do ENEM é uma das mais comentadas todos os anos.

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A prova de redação do ENEM é uma das mais comentadas todos os anos. Aliás, o tema da redação sempre é o primeiro de todos os elementos a ser divulgado nas redes sociais, causando sempre intenso burburinho. Infelizmente, vivemos em um país cujo grau de desvalorização da educação resulta no fato de que uma prova que deveria medir os conhecimentos ortográficos, textuais e discursivos do aluno seja encarada como o “grande desafio” avaliativo deste teste de abrangência nacional.

Logicamente, dificuldades atraem medo – até exagero – e o termo resultante é justamente “o boi de piranha” para que oportunistas se aproveitem, desde sempre, da atitude de vender fórmulas milagrosas. Se no fim do século XIX eram as “panaceias”, frutos da pseudociência então vigorante e que prometiam “curar todos os males” – sendo que, em alguns casos, elas intensificam os problemas já sofridos –, no século XXI temos que lidar com “espertinhos” que tentam oferecer “fórmulas mágicas” para “facilitar a vida”. E, como estamos tratando do campo da educação, por que aqui também não haveria estes “milagreiros”? Pois bem, eles existem e  tentam empurrar as famigeradas “fórmulas prontas de redação” ou “redações coringas”.

O nome é novo, mas a ideia não. Nos anos 1960, quando os cursinhos pré-vestibulares começaram a se tornar uma realidade bastante lucrativa, os professores de redação tentaram bolar um modo de “facilitar” suas vidas e as dos alunos. Criaram, então, modelos prontos de redação, onde bastava encaixar a temática e os tópicos frasais para, voilá, criar uma redação. No início, é claro, a coisa funcionou, pois os corretores não se preocupavam tanto com a estrutura, mas sim com a parte gramatical e de conteúdo. Meu pai, inclusive, tem um destes “manuais” em casa e, pasmem: são incrivelmente parecidos com os manuais de hoje. Até os pontinhos das lacunas para inserir os tópicos frasais… uau!

Só que as instituições não são estúpidas e, mesmo naqueles tempos onde a internet era uma realidade dos desenhos dos Jetsons, a comunicação foi chegando até as bancas examinadoras e elas começaram a perceber a semelhança entre as redações. Não obstante a isso, os próprios manuais – que eram vendidos como “livros de redação” – também chegaram à ciência das bancas, que tomaram a sábia decisão de proibir os chamados modelos prontos – a esta altura, eles eram chamados de “redações nariz de cera”, justamente por serem textos pré-moldados.

E as redações nariz de cera realmente sumiram por um longo tempo. Até o final dos anos 2000, este modelo não era mais replicado pelos professores de cursinho, que focavam mesmo na construção da estrutura do texto a partir do debate de ideias. Entretanto, a chegada do ENEM como modelo de vestibular, a partir de 2009, acabou apresentando a necessidade de uma redação que possuía algumas peculiaridades em relação aos tradicionais vestibulares, como a proposta de intervenção.

Tal situação motivou que os professores “resgatassem” os modelos “nariz de cera”, novamente visando facilitar o processo de correção e de ensino. Em tese, entre os anos de 2009 e 2014, este sistema até funcionou, mas a partir de 2015, as bancas examinadoras do ENEM começaram a perceber que certas ocorrências – como o uso de palavras rebuscadas e o emprego de citações de teóricos e filósofos complemente alheios a realidade do ensino médio – suscitaram o conceito de que os modelos pré-moldados voltaram com força.

O pior é que, agora, esta situação não se refere somente a uma “fórmula para fazer redação”, mas uma falsa promessa de “milagre”. Entre 2014 e 2020, eram comum ler nas redes sociais de participantes do ENEM a frase “fórmula da redação nota 1000”. Estes manuais, que tem um preço bem elevado ou são atrelados a cursos preparatórios igualmente caros,  ensinavam os mesmos modelos “nariz de cera” dos anos 1970 e 1980, com a diferença que, agora, focavam no uso do repertório sociocultural e na proposta de intervenção. Além disso, passaram a ser vendidos com o nome de seus “criadores” (leia-se donos dos cursos) e não irei citá-los porque todo mundo conhece e eu não quero levar um processo por usar o nome de alguém – mesmo que ela esteja errada, tecnicamente não posso expô-la.

Eu não vejo problema algum do aluno utilizar um modelo de redação como ponto de partida para seus estudos. Há estudantes que, de fato, nunca produziram uma única redação na vida e precisam se habituar aos mecanismos textuais empregados na produção de uma dissertação argumentativa. Se o candidato utiliza esta redação como um ponto de partida a ser aperfeiçoado, viva! O problema é que inúmeros jovens – a maioria, eu diria – insistem em usar estes modelos apenas nas vésperas do ENEM e, pior, iludem-se com o fato de terem tirado uma nota 800, dizendo que “fulano(a) foi o Deus que me fez tirar 800 no ENEM”. Um detalhe: uma nota 800 não ajuda você em muita coisa para ingressar numa universidade pública e em um curso concorrido, por exemplo.

É preciso que o jovem entenda que o ENEM utiliza dois critérios nas competências 2 e 3, chamados de “indício de autoria” e “autoria”. A diferença entre eles é que, no “indício”, significa que o texto parece ter sido feito pelo estudante, mas ele não tem naturalidade; por outro lado, a “autoria” confere que o texto possui legitimidade, ou seja, foi realmente criado pelo estudante.

É claro que tem jovens que utilizam redações prontas e conseguem notas acima de 900. Entretanto, são estudantes que já tem alguma malícia na produção textual e sabem como podem “dar um jeito” no seu texto para não parecer iguais aos outros. Este público, contudo, corresponde a uma minoria, logo não pode ser considerado padrão: é mais corriqueiro encontrarmos jovens que simplesmente “repetem” os aspectos da construção textual do início ao fim, sem inventividade, e que acabam conseguindo notas medianas, mas insuficientes para uma aprovação.

Vou dar algumas provas de como estes modelos nem sempre funcionam. Uma regra quase sempre veiculada é que os estudantes utilizem “palavras rebuscadas” na produção do texto, pois isso “elevará as chances de obter uma nota elevada”. Isto é uma mentira: a cobrança que o ENEM estabelece é que o texto esteja escrito de acordo com a norma padrão (ou seja, as regras gramaticais adequadas), mas isto não quer dizer que ele precisa de palavras que possuam alto grau de preciosismo. Texto dissertativo não é poesia parnasiana, logo o rebuscamento demonstra-se desnecessário na construção textual.

Outra situação bastante recorrente são as “citações” de grandes pensadores da humanidade. Sim, é importante possuir conhecimento acerca de inúmeros intelectuais fundamentais na nossa vida e ciência: porém, entende-se que repertório sociocultural é tudo aquilo que o jovem acumulou como “experiência de conhecimento” ao longo de sua vida acadêmica. Já vi ótimas redações que usaram desenhos animados, séries de televisão e telenovelas como repertório sociocultural, pois as ideias apresentadas foram embasadas e bem relacionadas ao tema principal. Por outro lado, já vi muita redação mediana para ruim carregada de frases de Eric Hobsbawm, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir ou Carl Sagan. E sabe qual o motivo? Não adianta empregar uma “frase de efeito”, é preciso relaciona-la, argumenta-la e justifica-la na construção textual!

Redação é um texto que, por mais haja critérios objetivos, depende do caráter subjetivo da sua produção. Somente o toque pessoal do candidato é que faz o texto demonstrar autenticidade. Uma das piores coisas que existem é a leitura de um texto que repete modelos prontos, pois dão uma péssima impressão de “copia e cola”. Além disso, a banca do ENEM sempre faz uma amostragem antes das provas e observa que certos mecanismos se repetem. Eles são então considerados “indícios de autoria” previamente e, exceto se o candidato demonstrar domínio sobre a arguição, ele poderá ter a nota reduzida na avaliação final.

Portanto, treinem redação! Eu sei que é sacrificante, mas não arrisquem um ano de estudos em troca de uma facilidade que só te iludirá e te fará acreditar numa mentira. Há uma regra que diz que, para cada esperto, há um tolo. Não sejam, portanto, os tolos que acreditarão em oportunistas que oferecem “panaceias dissertativas” que causarão uma mente turva e a estagnação daquilo que você é verdadeiramente capaz de produzir: um texto original, objetivo, bem feito e com autoria!

Prof. Raimundo Poeta